domingo, 13 de dezembro de 2020

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia

A vígilia começou, na igreja, um silêncio de dor mas todos ali sabiam o que pedir para Deus: o fim da pandemia. Muitos dos nossos amigos e parentes perderam a vida para esta doença, tão estranha e desconhecida. No templo, em meio ao cheiro agradável dos incensos, reinava um gosto de luto. Me lembro que, na semana passada, havia passado na porta da igreja e, pela porta entreaberta, vi quando um morador de rua entrou, passou em frente ao altar, ficou por alguns minutos e sumiu num canto cego. Pensei que, talvez, pudesse oferecer ajuda, mas decidi não me comprometer. Nesta outra ocasião, fui convidado para fazer parte da equipe de canto. Cheguei com meu instrumento musical, porém, atrasado. Enquanto montava o equipamento, vi o mesmo mendigo da semana passada, passando no meio das poucas pessoas que estavam na igreja. Ele andava todo emborcado. Muitas pessoas não estão se arriscando, de maneira alguma, a sair de casa, afinal, a doença tem se arrastado no tempo, sem solução, enquanto o governo federal não sabe o que fazer. Já são quase 300.000 mortos no país. Muitas famílias despedaçadas, muita gente que acreditava na mentira desse vírus hoje se encontra a sete palmos do chão. O morador de rua, com um odor insuportável, passava entre todos, por sinal, ele não usava máscara. Aliás, via-se pelas mãos que há meses ele não tomava um banho, mesmo assim, lambuzou-se de álcool em gel na entrada. Quando o vi, passando lentamente e cabisbaixo, decidi deixar meu sax e ir ao encontro daquele homem. Antes que eu me achegasse, o Padre Flávio chegou primeiro e, educadamente, começou a conduzí-lo para a porta lateral da igreja. Voltei até a equipe de canto para guardar meu instrumento e ficar por conta daquele sofredor das ruas. Quando dei a volta para chegar até a porta lateral, uma pessoa me informou que levaram o homem para o banheiro. Fui para o banheiro, porém, não consegui entrar, não sei por qual motivo, havia grades impedindo que eu chegasse pelo caminho mais curto e mais óbvio. Das grades, conseguia ver pela janela, e, para minha surpresa, vi o sr. Ditão dando um banho no morador de rua. Comecei a rir muito porque o Ditão estava tomando banho também, fazendo valer a lógica de que, já que está na água, é pra se molhar. Junto com o Ditão, vi dois amigos de longa data, caras com quem comecei o trabalho de assitência às pessoas em situação de rua, trabalho este que exerço ainda hoje. E creio que sempre. Despertei feliz para um novo dia e, ao mesmo tempo, assustado com a alarmante profecia. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia, como diz o Chico Buarque, né?

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