domingo, 3 de janeiro de 2021

uma filha, uma irmã, nunca uma escrava.

Naquela manhã de 1982 na pequena São Miguel da Anta, Minas Gerais, uma garotinha faminta bateu à porta de Dona Gracinha em busca de um pão. De cara, não recebeu um não, mas algo mais que pão. A Dona Gracinha era uma professora muito querida na cidade, inclusive, dona de uma escola. Ela fitou aquela menininha e viu que ela tinha potencial, não para galgar os degraus da educação, mas para lavar os degraus da sua casa. A menina se chamava Madalena, bem franzina e pequena, cuja mãe tinha mais uma renca de filhos. Dona Gracinha ofereceu ajuda à mãe de Madalena, prometendo cuidar como se sua filha fosse. Aquela senhora, querendo o melhor para filha, aceitou a proposta e deixou a pequena na casa dos Milagres Rigueira. Na hora de ir para escola sua nova mãe disse que ela não precisava mais estudar pois já era uma mocinha. É engraçado: uma professora desprezar os estudos de uma criança. Tirar os estudos da Madalena foi o grande e principal crime. O opressor sempre sabe que uma pessoa que estuda vai conhecer seus direitos e vai lutar por eles. De 1982 a 2006, Madalena viveu sem escola, sem brincar, sem se socializar. Ela vivia presa às vontades de Dona Gracinha. Lavava, cozinhava, passava, fritava, molhava... fazia todos os serviços domésticos. Como recompensa, não tinha nada: nem dinheiro, nem carinho, nem conforto. Absolutamente, nenhum luxo, nenhuma diversão, faltavavam-lhe, apenas, os grilhões. Madalena cresceu sem viver as fases da vida, parou na fase onde ela era escravizada por uma família repleta de boas intenções, tipo o inferno. Enquanto Madalena teve seus estudos cancelados, um dos filhos de Dona Gracinha chegou ao doutorado. Naquele ano de 2006, o esposo de Dona Gracinha estava fatigado da presença da Madalena, deu pra pegar no pé da coitada. Para preservar o humor e a saúde mental do Senhor Vanir Rigueira, Madalena foi dada ao filho, Dalton César Milagres Rigueira, que, naquele ano, fora contratado por uma faculdade particular na cidade de Patos de Minas. E lá se foi Madalena, para bem longe de sua família biológica e também da sua "mãe de coração" (ruim). Em Patos, Madalena passou a viver num quartinho abafado em um condomínio chique. Em 2001, após um plano infalível de sua futura nova dona, casou-se com o tio de Valdirene Rigueira, ex-combatente das forças armadas brasileira, com duas aposentadorias. Pouco depois, o ancião morreu sem nunca ter vivido como marido ao lado de Madalena. A partir de então, Valdirene passou a administrar a pensão repassada para Madalena, coisa de uns 8.000 reais mensais, dos quais repassava entre 50 e 200 por mês para a verdadeira dona. Que crime é esse? Apropriação indébita. Madalena viveu como escrava até que alguns vizinhos denunciaram o caso ao Ministério Público do Trabalho. Recebeu sua alforria em novembro de 2020, mas nada fará voltar o tempo perdido durante essa malvada estada de escrava numa casa de família. O interessante é que os Milagres Rigueira usam o argumento de que ela era parte da família, uma filha, uma irmã, nunca uma escrava. Em sua dedicatória de doutorado, o professor Dalton agradeceu a todos de sua casa e, de modo especial, aos suínos (objeto de sua tese). Em nenhum momento surge o nome Madalena. Madalena nunca existiu como ser humano para esta família, era uma coisa, só isso. Que você volte a sorrir, Madalena! que compre as bonecas que quiser, que compre as roupas que quiser! Que seja feliz! E que seus agressores sejam punidos. Se você desconfia de alguma família bondosa que, por acaso, esteja ajudando uma criança, joven ou adulto nas mesmas condições do caso Madalena, denuncie! Omissão também é crime. Não importa quanto tempo passou, escravidão não prescreve. Denuncie!

Um comentário:

Glorinha disse...

É absurdo demais!😔😕
Madalena, desejo a você tudo de melhor nessa vida. Felicidades mil, ninguém merece passar por tanta humilhação assim.